sábado, 18 de fevereiro de 2012

Clichê urbano.

Chutei o latão de lixo com certa verocidade e um gato que estava parado nos arredores, soltou um grunhido estridente e saiu correndo. Meus olhos ardiam e eu não conseguia focar em nada, tudo parecia estar se movendo em velocidade rápida demais, menos o mendigo que estava deitado quase ao lado de onde o gato saíra. Queria pedir desculpas por ter espantado o bichano do coitado, mas desisti porque nada saia da minha boca. Se eu movesse meus dentes para soltar qualquer palavra, eu sentiria aquele gosto amargo na língua de novo e as náuseas — que estavam cessando — voltariam com toda a força.

"Mas que merda, Rodrigo...", aquilo estava ecoando na minha cabeça e eu ainda andava a passos lentos demais. Uma puta parada na esquina tentou me puxar pela jaqueta e eu me desvencilhei com certa dificuldade, mas quase me rendi e falei: como pagamento eu te dou um revólver e você me mata, pode ser? Desisti quando os olhos dela se fixaram nos meus enquanto ela ficava me chamando de "garotão", senti nojo e as náuseas voltaram. Quando já havia me distanciado dela, apoiei meu braço num muro e abaixei a cabeça tentando eliminar o que me incomodava. Álcool, cigarro e todas as merdas que me ofereceram estavam se embrulhando dentro de mim e eu só queria voltar há algumas horas antes e mudar o roteiro daquela noite incrível. Incrível. Não consegui vomitar, não consegui voltar no tempo e fiquei parado naquele muro por sei lá quanto tempo. Vendo o chão se mover sem eu sair do lugar.

Enfiei a mão no bolso da jaqueta, peguei meu celular com o visor arranhado e digitei os números que saíam como se estivessem grudados nas pontas dos meus dedos. O braço direito apoiado no muro ainda enquanto eu segurava o celular com a mão esquerda e fechava os olhos para não cair. Chamou quinhentas vezes e ela não me atendeu. Juro que eu contei. Mas não me importei e liguei de novo. Só que para minha surpresa, ela atendeu meio sonolenta e com aquela voz angelical que qualquer um que não a conhecesse bem, se apaixonaria:

— Que foi, Rodrigo? Eu estava dormindo. — E lá estava o anjo queimado pela amargura.
— Quero te perguntar uma coisa. — Meu estômago rodava dentro de mim e eu fui abaixando abaixando abaixando até estar sentado no chão com a cabeça contra o muro. Abri os olhos e observei o muro da frente que estava escrito: "Mais amor, por favor". Quis gargalhar com aquela ironia.
— Pergunta. — Provavelmente ela havia se ajeitado na cama e estava olhando para o teto, como sempre fazia quando estava irritada.
— Você concorda com a frase "Mais amor, por favor"? — Perguntei rindo e ela continuou calada. — Desculpa, não era isso. Só está escrito no muro aqui da frente. — Fechei os olhos e suspirei.
— Pergunta logo. — Ela estava louca para saber onde eu estava e com quem, era óbvio.
— Se eu morresse hoje, Júlia, o que você sentiria amanhã? — Eu estava maluco, não era nada daquilo que eu queria perguntar, mas saiu feito música pela minha boca. Ela não respondeu e já que eu havia perguntado, me mantive firme. — Responde.
— Desculpa, tava acendendo um cigarro. — Ela soprou. — Eu choraria, Rodrigo.
— Você apareceria no meu velório? Digo, lembrando que eu sou um cretino. — O discurso estava pronto na minha cabeça, mas eu não sabia o que estava dizendo. Engoli em seco.
— Apareceria, claro. — Aquele tom de desdém me arranhava como arame farpado passando pelo meu peito e descendo pela barriga.
— E se eu pular na frente de um carro agora falando com você? — Abri os olhos e observei a rua deserta.
— Você não faria isso. — Ela riu e soprou de novo.
— Não? — Vi dois faróis vindos lá longe. — Tem um carro vindo ali... E se você repetir aquele "Que merda, Rodrigo", eu juro por Deus que pulo pro meio da rua.
— Você nem acredita em Deus. — Maldita.
— Foda-se, Júlia. Foda-se! — Eu me levantei devagar e observei os faróis há uns três quarteirões de distância. — Você me deixou infeliz demais. Como pode? Ninguém nunca me fez tão bem nem tão mal quanto você. E agora, Júlia? — Eu senti umas lágrimas ardidas caindo pela minha bochecha e dei um passo pra frente.
— Você começou tudo isso, babaca. — Ela falou como se tivesse certeza absoluta que eu não pularia. Mas e se eu pulasse? Analisei a rua e o carro e a rua e o carro e o celular. Ela ainda me amava, eu não podia causar aquela dor a ela.
— Você ainda me ama? — Perguntei para averiguar minha teoria.
— Não. — Mentira.
— Mesmo?
— Mesmo. — Mentira.
— Fala com todas as letras que não me ama, corre, o carro está chegando. — Ouvi a respiração ofegante dela.
— Merda! — Ela berrou. — Eu ainda te amo. — Soltei uma risada nervosa.
— Obrigada. — Suspirei e o carro passou por mim com quatro bêbados dentro gritando "viadinho".
— Onde você tá? — Primeira pergunta que ela estava se mordendo para fazer desde o começo.
— Na Augusta. — Fechei os olhos, olhei pro céu e olhei pro chão que estava se movendo mais devagar.
— Volta pra casa. — Ela suplicou baixinho.
— Já vou.

(Eu a fazia feliz só de pirraça e quando via, ela me fazia feliz sem esforço algum. Ela pegava meu pulso no meio da noite e sempre me assustava com esse jeito violento de me dar carinho. Eu me aproximava para beijar sua nuca e ela sempre se levantava para pegar água. Ela me pedia pra ir embora e eu sempre ia. Ia embora querendo morrer, querendo me matar, querendo matá-la também, mas sabendo que ela me chamaria. Porque ela sempre chamava e eu sempre voltava. Éramos opostos que não se atraiam, mas estávamos dispostos a contrariar a todos. Contrariávamos as leis da realidade, contrariávamos a nós mesmos e éramos dois fugitivos que se amavam acima de tudo. Vivíamos pelo impulso, pela urgência. Vivíamos como se estivéssemos com as armas apontadas contra nossas cabeças. Contando sempre os minutos para o fim chegar).

Um comentário:

Lucas disse...

Não sei como cheguei aqui, mas foi perfeito pra mim.