quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

A alma que queria partir.

O diagnóstico havia sido feito pelo melhor médico da cidade. Ele passara aproximadamente vinte noites acordado com os olhos bem abertos enquanto pensava na sua paciente e depois disso, a examinou mais oito vezes para ter certeza daquele caso raro. O único no mundo, quiçá. Como dar aquela notícia tão absurda para a família? Como explicar com palavras sensatas o que se passava com a pobre moça? Quem a olhasse nos olhos, talvez percebesse que algo estava errado, mas ninguém julgaria se tratar de algo tão grave. Quem a visse andando na rua achariam que tudo estava bem ou que ela estava simplesmente passando por um dia ruim. Ninguém — nem mesmo ela — sabia o que de fato lhe acontecia e lhe atormentava.

O doutor, então, depois de muito pensar trancado em sua sala, chamou a família e a moça. Chamou-os pra dentro e pediu que se sentassem. A mãe, um pouco trêmula, sentou segurando sua bolsa com as duas mãos firmes. O pai com um olhar bastante distante, sentou-se ao lado da mulher e repousou sua mão no ombro dela. Já a paciente sentou-se rapidamente e encarou o médico com aquelas pupilas dilatadas, aqueles olhos azuis amendoados e aquelas lágrimas acumuladas nas pontas dos cílios. E por fim, o namorado permaneceu em pé atrás dela com suas duas mãos sobre seus ombros. O médico puxou o ar enquanto aqueles oito pares de olhos o encaravam de maneira angustiante, ele mediu as palavras mais quinhentas vezes e disse:

— Pois então... — Outro suspiro foi arrancado de seus lábios.
— O que ela tem, doutor? Diz logo, não me aguento mais nessa agonia. — A mãe choramingou.
— Não sei explicar bem, não é nada físico. — Deu-lhes um sorriso amarelo e prosseguiu. — E não é nada psicológico que remédios possam curar ou que terapias possam ajudar. É algo mais profundo. — O papo estranho começara, mas ele teria que ir até o fim. — O problema está na alma da nossa pobrezinha. 
— Como assim na minha alma? — Ela levou sua mão até seu ombro e tocou a mão do namorado que estremeceu com a sensação de que um bloco de gelo o havia tocado. — Com todo respeito, doutor, mas quem o senhor acha que é para julgar minha alma?
— Não sou ninguém, garotinha. Mas eu sei. Eu sei e creio que você também sabe do que estou falando. — Ele fixou seus olhos nos dela e ela desviou o olhar para deixar que uma lágrima escorresse. Ele prosseguiu olhando para os pais. — Não há cura e nunca haverá, cuidem dela como se fosse seu último dia porque nunca saberemos quando realmente será. — O silêncio prevaleceu até todos decidirem se retirar da sala do médico maluco.

Rude. A menina pensava e repitia mil vezes em sua mente o quanto aquele doutor era rude para falar daquela maneira. O namorado lhe entrelaçara a mão no momento em que saíram do consultório e não ousava soltar. Os pais foram o caminho de volta para casa discutindo o que, afinal, o médico queria dizer com toda aquela baboseira. Mas ela, ela sabia bem do que ele dizia. Ela carregava na alma o peso no mundo, carregava nos ombros o que já não lhe cabia mais no peito e carregava no fundo dos olhos o que a vida havia lhe dado. Era aquela a verdade. Qualquer um que realmente reparasse nela, saberia que ela era uma joia rara de preço inestimável, mas que não adiantaria lutarem para proteger-lhe da solidão porque a solidão era sua melhor companhia. Ela fugia de todos para conseguir botar tantos pensamentos em ordem. Ela não conseguia devorar os sentimentos pelas bordas: ou ela pulava de ponta dos penhascos com os quais se deparava ou ela não seria ela. Ela precisava da imensidão e quando não tinha o mar ou o céu, recorria aos seus sentimentos. Era aquela a verdade.

Ao perceber que a namorada não havia dito uma palavra sequer desde que saíram do consultório, o rapaz de olhar ameno e lábios finos, resolveu chamar-lhe de volta para a realidade enquanto entravam no quarto dela:

— O que ele falou que te incomodou tanto? — O jovem foi direto.
— Ele me expôs, não suporto que façam isso comigo. Como ele descobriu? — Ela tinha os lábios trêmulos e afundou a cabeça na curva do pescoço do garoto.
— Como ele descobriu o quê? Por favor, me fala. — A angústia dela estava se passando para ele que não pensou duas vezes antes de começar a afagar os cabelos dela.
— Eu estou a beira da morte, amor. — Ela sussurrou no seu ouvido e enxarcou a bochecha de ambos com suas lágrimas cristalinas.
— Não está! Não está... O médico já disse que você não tem nada físico e muito menos psicológico. O que ele quis dizer com aquele lance de alma é tudo invenção, tudo invenção. — Desesperado e desamparado ele deixou um ou duas lágrimas caírem também.
— Não, não. Você não entendeu. Eu estou a todo momento a beira da morte, mas dessa vez acho que não escapo. — Ela pousou o dedo indicador sobre o lábio deles e prosseguiu... — Não diz nada. Quer dizer, diz sim, canta pra mim aquela música que fala da escuridão...
Meu amor, um dia você irá morrer, mas eu vou estar logo atrás... Eu vou seguir você até a escuridão*. — Ele cantou meio chorando meio sussurrando meio desesperado enquanto embalava a menina num abraço. As forças dela para soltar um suspiro forte eram escassas e só lhe restou soprar de leve enquanto sentia os braços do garoto ao seu redor. Ele a soltou um pouco para olhar dentro dos seus olhos e logo entendeu o que ela havia falado, voltando a abraçá-la em seguida e repetindo mil vezes sem pensar. — Eu vou seguir você até a escuridão...*


*Trecho da tradução da música "I will follow you into the dark" da banda Death Cab For Cutie.

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